quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A MENINA DOS FÓSFOROS

Nesse momento em que se discutem leis sobre o uso de drogas , achei oportuno apresentar um trecho do livro " DOCES VENENOS " , de Lidia Rosemberg Aratangy .
É um dos textos mais delicados que conheço para explicar essa dolorosa relação entre a droga e quem a consome , ou melhor , é consumido por ela .
Fui motivada também pela entrevista de Fábio Assunção , contando sobre sua luta para vencer o vício que tantos prejuízos vem causando à sua carreira de consagrado astro de televisão e cinema . Difícil imaginar como um jovem homem , bonito , rico , com um filho de 6 anos , vitorioso em sua carreira , amado por milhões de fãs , se envolve num problema com conseqüências tão desastrosas . Disse ele que justificou para o filho que iria para uma clínica para aprender a dormir , acordar e comer na hora certa . A droga desorganiza o que de mais simples e básico constitui a rotina de um ser humano .
Eu falo com conhecimento de causa , não só porque trabalho com pessoas que sofrem com os danos causados pelas drogas , mas por ser , eu mesma , uma dependente química . . . de açúcar . Faz tempo que tenho minha glicose perigosamente alterada . Sei perfeitamente dos riscos de uma alimentação inadequada . Juro freqüentemente para mim mesma e para os que amo e me amam , que vou me manter longe de doces , pães e massas .Penso no mau exemplo que estou dando para filhos , netos , amigos e pacientes . Com certeza nesse momento estou convencida de que devo e posso cumprir a promessa . Mas , há sempre um mas , passados alguns dias me pego pedindo ao meu marido que me traga "alguma coisa gostosa " da rua . E eu traio desavergonhadamente a minha promessa e a minha saúde . Sei , ah , como sei , como meu cérebro me induz a satisfazer seu vício . As moléculas que compõem o açúcar e o álcool são as mesmas . E eu penso " se vou a uma festa no sábado , vou sair da dieta , por que não aproveitar desde a quinta-feira ? " Essa idéia inunda meu momento de felicidade . De outra feita , trago uma abóbora do sítio , e mesmo dividindo com outras pessoas ,ainda sobra um grande pedaço . Penso logo que além de usá-la em pratos salgados , vale fazer um doce de abóbora , que depois de dado o ponto , conserva-se muito mais . Por que me preocupar com sua preservação quando sei que vou consumí-lo rapidamente ?
Como podem ver conheço e uso várias formas de sabotar meus objetivos .Isso me faz lidar com outra compreenção com sentimentos tão familiares a mim . É mais fácil enfrentar um inimigo conhecido . Há mais chances de vitória .
Nem por um momento sugiro que será fácil , apenas aumentam as possibilidades de um final feliz .

Carmen Marina Sande


A MENINA DOS FÓSFOROS

Era véspera de Ano Novo, e a menina (tão pequena, coitadinha!) que vendia fósforos estava com muito frio e com muita fome. Seu estoque de fósforos coloridos estava intacto, ninguém tinha comprado nada. Ainda por cima, ela tinha perdido seus chinelos na neve e seus pezinhos estavam enregelados.

Ela sabia que não podia voltar para casa , pois tinha certeza de que iria levar a maior surra do pai , com quem vivia sozinha , desde a morte da mãe . Ele batia nela constantemente e contava com o dinheiro da venda dos fósforos para comprar comida e bebida . A menina não podia chegar de mãos vazias .

O frio aumentou e ela resolveu acender um só dos fósforos coloridos , para se aquecer um pouco .

A pequena chama azulada trouxe mais do que um pouco de calor . Na luz bruxuleante do fósforo , seus olhinhos chorosos vislumbraram um fogareiro de ferro , onde a lenha crepitava e esquentava tanto , tanto , que ela estendeu também os seus pezinhos , para que se aquecessem .

Mas , muito depressa , a chama se extinguiu , o fogareiro desapareceu , e a menina se viu sentada no mesmo lugar , no chão gelado , tendo nas mãos o resto apagado do fósforo .

A noite , no entanto , parecia agora mais escura , mais fria , mais assustadora do que antes , quando ela ainda não tinha visto a luz mágica da pequena chama colorida .

Riscou rapidamente um segundo fósforo . Desta vez , seus olhos se depararam com a visão de uma sala de jantar , com a mesa posta , tendo ao centro uma enorme travessa com um peru assado , rodeado de ameixas , uvas e maçãs .

Apagou-se o fósforo. De novo, a menina se viu no frio da noite, enregelada e faminta, diante de uma parede escura e triste, que agora lhe parecia ainda mais escura, ainda mais triste.

Mais que depressa, a menina acendeu um terceiro fósforo. Desta vez, ela se viu diante da figura carinhosa de sua mãezinha, morta há tanto tempo.

Com medo de que a imagem querida também se desvanecesse no ar, como o fogareiro, como a comida, ela se põe apressadamente a acender um fósforo atrás de outro, até queimar todo o pacote. A luz assim produzida tinha uma claridade mais brilhante do que o dia, seu calor parecia mais quente do que o Sol.

E a um aceno sorridente de sua mãe, a menina deixou-se conduzir, segurando com suas mãozinhas frias as mãos quentes e macias que sua mãezinha lhe estendia. Seguiu-a, em direção às mais brilhantes estrelas do firmamento.

Quando clareou a fria manhã do Ano Novo, os passantes encontraram a menina sentada no chão, cercada pelos restos de fósforos queimados. Com as faces arroxeadas, ainda com um sorriso nos lábios. Morta de frio.

- Quis aquecer-se, coitadinha! disse alguém, ao passar.

Muitas vezes, a realidade em que a gente vive é tão ruim, tão feia e tão triste, que dá vontade de escapar dela, mesmo, a qualquer preço.

O problema é que, em geral, as drogas fazem com que as pessoas acabem se esquecendo de que havia uma realidade da qual queriam fugir - e as pessoas passam a acreditar que não foram elas que fugiram, mas que foi a realidade que mudou. Isto é, acabam acreditando que conseguiram provocar alguma mudança no mundo e resolver algum problema, quando o que conseguiram foi apenas colocar uma espécie de lente para mudar o seu jeito de ver o mundo que continua tão ruim, tão feio e tão triste como antes. Só que mais perigoso.

Essa espécie de sinal de realidade , essa capacidade de distinguir entre o real e o imaginário - que se perde com a droga - é um dos mecanismos responsáveis pela sobrevivência humana .

Trecho do livro DOCES VENENOS de Lidia Aratangy