domingo, 25 de setembro de 2011

VOCÊ SE CONHECE ?

Quando  em  consulta  meus  pacientes  falam  com  desenvoltura  e  fluência  sobre  outras  pessoas , pais , namorado , irmão , filho . . .  Descrevem  como  essas  pessoas  agem  e  o  que  as  move  a  isso . Conhecem  o  encaminhamento  do  raciocínio  e  sabem  perfeitamente  como  essas  pessoas  pensam .
É  comum  mães  falarem  por  seus  filhos , tentando  traduzi-los  para  o  mundo  como  se  isso  não  pudesse  acontecer  normalmente  sem  a  sua  ajuda .
Essa  sabedoria  profunda  desaparece  como  por  encanto  quando  peço  que  falem  de  sí  próprios . Ai  começam  os  grandes  silêncios , o  riso  nervoso , a  declaração  de  que  isso  é  muito  difícil , pausas  constrangedoras .
Sabem  tudo   sobre  o  outro  e  nada  sobre  si  mesmos !
Desde  cedo  somos  educados  acreditando  que  pensar  em  nós  mesmos  é  egoísmo . Somos  educados  para  entender  e  respeitar  o  que  os  adultos  esperam  de  nós . Devemos  obedecer  aos  pais , aos  parentes , aos  professores  e  mais  tarde  ao  "chefe" .  Somos  preparados  para  satisfazer  as  exigências  dos  outros  e  dedicamos  nosso  tempo  à  difícil  tarefa  de  decifrá-las .
Não  temos  tempo  nem  interêsse  para  dedicar  ao  nosso  auto- conhecimento . Como  pensamos , do  que  , verdadeiramente ,  gostamos ,  por que  temos  certos  comportamentos  , são  incógnitas  para  nós  mesmos . Somos  nosso  maior  desconhecido . Sequer  sabemos  se  o  que  nos  rege  é  um  pensamento  nosso , ou  se  foi  em  nós  colocado  por  outro  e  aceitamos  sem  questioná-lo . 
Percebo  a  perplexidade  quando  se  dão  conta  dessa  realidade .
E  o  mais  grave  é  que  perpetua-se  esse  erro  na  educação  das  novas  gerações . Quando  se  pensa  educar  com  limites , mais  uma  vez  esses  limites  levam  muito  pouco  em  conta  quem  , realmente , é  o  educando  , sua  personalidade  e  suas  características  . Julga-se  com  a  própria   cabeça  o  que  imaginamos  seria  bom  para  nós  mesmos .
No  livro " A  Metafísica  dos  Tubos "  da  escritora  belga  Amélie  Nothomb  , (pags. 118  até  121)  encontrei  uma  passagem  que  muito  bem  descreve  essa  realidade . Uma  criança  pede  aos  seus  pais  um  elefante  de  pelúcia  como  presente  de  aniversário  de  três  anos . Nessa  ocasião  eles  viviam  no  Japão . Seu  pai  era  cônsul  da  Bélgica  lá .

    " Nada  como  a  intimidade  para  celebrar  meu  triunfo . No  momento  em  que  eu  recebesse 
    meu  elefante  de  pelúcia , o  dia  teria  chegado  ao  ápice  de  sua  magnificência .
       Os  pais  me  anunciaram  que  eu  receberia  o  presente  na  hora  da  merenda . Hugo  e  André 
    disseram -me  que  excepcionalmente  se  absteriam  de  me  provocar  durante  um  dia  . 
    Kashima-san  não  disse  nada .
    Passei  as  horas  seguintes  numa  impaciência  alucinada . Aquele  elefante  era  o  presente  mais  fabuloso  que  me  teriam  dado  em  toda  a  minha  vida . Eu  me  perguntava  sobre  o  comprimento  de  sua  tromba  e  o  peso  que  teria  em  meus  braços .
     Eu  chamaria  o  elefante  de  Elefante : seria  um  lindo  nome  para  um  elefante .
     Às  quatro  horas  da  tarde , chamaram-me . Cheguei  à  mesa  da  merenda  com  batimentos  cardíacos  de  oito  graus  na  escala  Richter . Não  vi  nenhum  embrulho .
     Devia  estar  escondido .
      Formalidades . Bolo . Três  velas  acesas , que  fui  soprando  para  apressar  a  coisa . Cansões .
     -- Onde  está  meu  presente ? - acabei  perguntando . Os  pais  deram  um  sorriso  finório .
     -- É  surpresa .
     Inquietação :
    -- Não  é  o  que  eu  pedi ?
    -- É  melhor  ainda !
    Melhor  que  um  paquiderme  de  pelúcia  não  era  possível . Eu  estava  pressentindo  o  pior .
    -- O  que  é ?
    Levaram-me  ao  laguinho  de  pedra  do  jardim .
    -- Olhe  na  água .
    Três  carpas  vivas  esbaldavam-se  na  água .
    A  gente  viu  que  você  adora  peixes  e  especialmente  as  carpas . E  resolvemos  te  dar  três :
    uma  para  cada  ano  . Não  é  uma  boa  idéia ?
    -- É -- respondi  com  consternada  polidez .
    -- A  primeira  é  laranja , a  segunda  é  verde  e  a  terceira  é  prateada . Não  é  lindo ?
   -- É -- disse  eu , pensando  que  era  asqueroso .
   -- Você  é  que  vai  cuidar  delas . Compramos  um  estoque  de  barras  de  arroz  compactado :  você  tem   que  cortá-las  em  pedacinhos  e  atirar  para  elas , assim . Está  contente ?
   -- Muito .
 Inferno  e  danação . Eu  teria  preferido  não  ganhar  nada .

    Não  fora  tanto  por  cortesia  que  eu  mentira . Era  porque  nenhuma  linguagem  conhecida  seria  capaz  de  sequer  chegar  perto  da  intensidade  do  meu  mau  humor , porque  nenhuma  expressão  poderia  chegar  aos  calcanhares  da  minha  decepção .
    Na  lista  infinita  das  perguntas  humanas  sem  resposta , é  preciso  incluir  esta : que  se  passa
  na  cabeça  dos  pais  bem-intencionados  quando , não  satisfeitos  em  cultivarem  idéias  inacreditáveis  sobre  seus  filhos , tomam  iniciativas  por  eles ?
    Costuma-se  perguntar  às  pessoas  o  que  queriam  ser  quando  eram  crianças . No  meu  caso , é  mais  interessante  fazer  a  pergunta  aos  meus  pais : a  sucessão  de  suas  respostas  dá  a  exata
   imagem  do  que  eu  nunca  quis  me  tornar .
   Quando  eu  tinha  três  anos , eles  proclamavam  a  "minha"  paixão  pela  criação  de  carpas . Quando  fiz  sete  anos , anunciaram  a  "minha"  decisão  solene  de  entrar  para  a  carreira  diplomática . Meus  doze  anos  viram  aumentar  sua  convicção  de  terem  como  rebento  um       líder  político . E  quando  eu  fiz  dezessete  anos  eles  declararam  que  eu  seria  a  advogada 
    da  família .
  Acontecia-me  às  vezes  de  perguntar- lhes  de  onde  tiravam  aquelas  idéias  estranhas  . Eles  respondiam  , sempre  com  a  mesma  tranqüilidade , que  "era  evidente"  e  que  "todo  mundo 
   achava ". E  quando  eu  queria  saber  quem  era  " todo  mundo " , eles  diziam :
   -- Todo  mundo , ora !
   Sua  boa  fé  não  devia  ser  contrariada .

Como  bem  descreve  a  autora , é  surpreendente  o  que  se  supõe  saber  sobre  os  outros !
E  mais  surpreendente , ainda , a  constatação  do  pouco  que  sabemos  sobre  nós  mesmos .

Carmen Marina Sande