Quando em consulta meus pacientes falam com desenvoltura e fluência sobre outras pessoas , pais , namorado , irmão , filho . . . Descrevem como essas pessoas agem e o que as move a isso . Conhecem o encaminhamento do raciocínio e sabem perfeitamente como essas pessoas pensam .
É comum mães falarem por seus filhos , tentando traduzi-los para o mundo como se isso não pudesse acontecer normalmente sem a sua ajuda .
Essa sabedoria profunda desaparece como por encanto quando peço que falem de sí próprios . Ai começam os grandes silêncios , o riso nervoso , a declaração de que isso é muito difícil , pausas constrangedoras .
Sabem tudo sobre o outro e nada sobre si mesmos !
Desde cedo somos educados acreditando que pensar em nós mesmos é egoísmo . Somos educados para entender e respeitar o que os adultos esperam de nós . Devemos obedecer aos pais , aos parentes , aos professores e mais tarde ao "chefe" . Somos preparados para satisfazer as exigências dos outros e dedicamos nosso tempo à difícil tarefa de decifrá-las .
Não temos tempo nem interêsse para dedicar ao nosso auto- conhecimento . Como pensamos , do que , verdadeiramente , gostamos , por que temos certos comportamentos , são incógnitas para nós mesmos . Somos nosso maior desconhecido . Sequer sabemos se o que nos rege é um pensamento nosso , ou se foi em nós colocado por outro e aceitamos sem questioná-lo .
Percebo a perplexidade quando se dão conta dessa realidade .
E o mais grave é que perpetua-se esse erro na educação das novas gerações . Quando se pensa educar com limites , mais uma vez esses limites levam muito pouco em conta quem , realmente , é o educando , sua personalidade e suas características . Julga-se com a própria cabeça o que imaginamos seria bom para nós mesmos .
No livro " A Metafísica dos Tubos " da escritora belga Amélie Nothomb , (pags. 118 até 121) encontrei uma passagem que muito bem descreve essa realidade . Uma criança pede aos seus pais um elefante de pelúcia como presente de aniversário de três anos . Nessa ocasião eles viviam no Japão . Seu pai era cônsul da Bélgica lá .
" Nada como a intimidade para celebrar meu triunfo . No momento em que eu recebesse
meu elefante de pelúcia , o dia teria chegado ao ápice de sua magnificência .
Os pais me anunciaram que eu receberia o presente na hora da merenda . Hugo e André
disseram -me que excepcionalmente se absteriam de me provocar durante um dia .
Kashima-san não disse nada .
Passei as horas seguintes numa impaciência alucinada . Aquele elefante era o presente mais fabuloso que me teriam dado em toda a minha vida . Eu me perguntava sobre o comprimento de sua tromba e o peso que teria em meus braços .
Eu chamaria o elefante de Elefante : seria um lindo nome para um elefante .
Às quatro horas da tarde , chamaram-me . Cheguei à mesa da merenda com batimentos cardíacos de oito graus na escala Richter . Não vi nenhum embrulho .
Devia estar escondido .
Formalidades . Bolo . Três velas acesas , que fui soprando para apressar a coisa . Cansões .
-- Onde está meu presente ? - acabei perguntando . Os pais deram um sorriso finório .
-- É surpresa .
Inquietação :
-- Não é o que eu pedi ?
-- É melhor ainda !
Melhor que um paquiderme de pelúcia não era possível . Eu estava pressentindo o pior .
-- O que é ?
Levaram-me ao laguinho de pedra do jardim .
-- Olhe na água .
Três carpas vivas esbaldavam-se na água .
A gente viu que você adora peixes e especialmente as carpas . E resolvemos te dar três :
uma para cada ano . Não é uma boa idéia ?
-- É -- respondi com consternada polidez .
-- A primeira é laranja , a segunda é verde e a terceira é prateada . Não é lindo ?
-- É -- disse eu , pensando que era asqueroso .
-- Você é que vai cuidar delas . Compramos um estoque de barras de arroz compactado : você tem que cortá-las em pedacinhos e atirar para elas , assim . Está contente ?
-- Muito .
Inferno e danação . Eu teria preferido não ganhar nada .
Não fora tanto por cortesia que eu mentira . Era porque nenhuma linguagem conhecida seria capaz de sequer chegar perto da intensidade do meu mau humor , porque nenhuma expressão poderia chegar aos calcanhares da minha decepção .
Na lista infinita das perguntas humanas sem resposta , é preciso incluir esta : que se passa
na cabeça dos pais bem-intencionados quando , não satisfeitos em cultivarem idéias inacreditáveis sobre seus filhos , tomam iniciativas por eles ?
Costuma-se perguntar às pessoas o que queriam ser quando eram crianças . No meu caso , é mais interessante fazer a pergunta aos meus pais : a sucessão de suas respostas dá a exata
imagem do que eu nunca quis me tornar .
Quando eu tinha três anos , eles proclamavam a "minha" paixão pela criação de carpas . Quando fiz sete anos , anunciaram a "minha" decisão solene de entrar para a carreira diplomática . Meus doze anos viram aumentar sua convicção de terem como rebento um líder político . E quando eu fiz dezessete anos eles declararam que eu seria a advogada
da família .
Acontecia-me às vezes de perguntar- lhes de onde tiravam aquelas idéias estranhas . Eles respondiam , sempre com a mesma tranqüilidade , que "era evidente" e que "todo mundo
achava ". E quando eu queria saber quem era " todo mundo " , eles diziam :
-- Todo mundo , ora !
Sua boa fé não devia ser contrariada .
Como bem descreve a autora , é surpreendente o que se supõe saber sobre os outros !
E mais surpreendente , ainda , a constatação do pouco que sabemos sobre nós mesmos .
Carmen Marina Sande