quarta-feira, 2 de abril de 2008

Um pouco de silêncio


Numa sessão de terapia , hoje , surgiu o assunto das dificuldades de um "descasamento" . Como é vista uma mulher só . Como um silêncio reflexivo , tão saudável , quando se está buscando um encontro consigo mesmo , é interpretado como tristeza ou doença . E quantas tentativas são feitas para evitar olhar para dentro .
Lembrei , então , do livro "Pensar é Transgredir" de Lya Luft . Ai vai uma crônica que ilustra com perfeição o que falamos .
Carmen Marina

Um pouco de silêncio

Nesta trepidante cultura nossa , da agitação e do barulho , gostar de sossego é uma excentricidade .Sob a pressão de ter de aparecer , ter de participar , ter de adquirir , ter de qualquer coisa , assumimos uma infinidade de obrigações . Muitas desnecessárias , outras impossíveis , algumas que não combinam conosco nem nos interessam .
Não há perdão nem anistia para os que ficam de fora da ciranda : os que não se submetem mas questionam , os que pagam o preço de sua relativa autonomia , os que não se deixam escravisar , pelo menos sem alguma resistência .O normal é ser atualizado , produtivo e bem-informado . É indispensável circular , estar enturmado .Quem não corre com a manada praticamente nem existe , se não se cuidar botam numa jaula : animal estranho .
Acuados pelo relógio , pelos compromissos , pela opinião alheia , disparamos sem rumo - ou em trilhas determinadas - feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação .
Ficar sossegado é perigoso : pode parecer doença . Recolher-se em casa ou dentro de si mesmo , ameaça quem leva susto cada vez que examina sua alma .
Estar sozinho é considerado humilhante , sinal de que não se arrumou ninguém - como se amizade ou amor se "arrumasse" em loja . Com relação a homem pode até ser libertário : enfim só , ninguém pendurado nele controlando , cobrando , chateando . Enfim , livre !
Mulher , não . Se está só , em nossa mente preconceituosa é sempre porque está abandonada : ninguém a quer .
Além do desgosto pela solidão , temos horror à quietude . Logo pensamos em depressão : quem sabe terapia e anti-depressivo ? Criança que não brinca ou salta nem participa de atividades frenéticas está com algum problema .
O silêncio nos assusta por retumbar no vazio dentro de nós . Quando nada se move nem faz barulho , notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas , ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos . Nos damos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre casa , trabalho e bar , praia ou campo .
Existe em nós , geralmente nem percebido e nada valorizado , algo além desse que paga contas , transa , ganha dinheiro , e come , envelhece e um dia ( mas isso é só para os outros ! ) vai morrer . Quem é esse que afinal sou eu ? Quais seus desejos e medos , seus projetos e sonhos ?
No susto que essa idéia provoca , queremos ruídos , ruídos . Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar a bolsa ou a pasta . Não é para assistir a um programa : é pela distração .
Silêncio faz pensar , remexe águas paradas , trazendo à tona sabe Deus que desconserto nosso . Com medo de ver quem - ou o que - somos , adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras .
Mas se a gente aprende a gostar um pouco de sossego , descobre - em si e no outro - regiões nem imaginadas , questões fascinantes e não necessariamente ruins .
Nunca esqueci a experiência de quando alguém botou a mão no meu ombro de criança e disse :
-Fica quietinha , um momento só , escuta a chuva chegando .
E ela chegou : intensa e lenta , tornando tudo singularmente novo . A quietude pode ser como essa chuva : nela a gente se refaz para voltar mais inteiro ao convívio , às tantas frases , às tarefas , aos amores .
Então , por favor , ma dêem isso : um pouco de silêncio bom para que eu escute o vento nas folhas , a chuva nas lages , e tudo o que fala muito além das palavras de todos os textos e da música de todos os sentimentos .

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