terça-feira, 15 de abril de 2008

Banalização . . . "O Monstro da Indiferença"


Tenho por norma alertar tanto em terapia , como em palestras , sobre nossa capacidade de adaptação que pode nos levar a ignorar o que se passa a nossa volta , sejam fatos , objetos ou pessoas e do risco de nos acostumarmos até com o que nos incomoda , por conta da repetição . Isto é , passamos a aceitar como natural , o inaceitável .

Por exemplo , vivemos numa casa e tudo nos parece bem , até que se anuncie uma visita de cerimônia ou a idéia de dar uma festa . Como num repente , tudo muda . Percebemos que o tecido dos estofados está desbotado e que as paredes precisam , urgente de pintura . A casa mudou ? Não , mudou nosso olhar que se tornou atento e crítico .


Nesse pequeno texto , Otto Lara Resende trata desse assunto com verdade e lirismo .
Carmen Marina



O monstro da indiferença



Se eu morrer , morre comigo um certo modo de ver , disse o poeta .

Um poeta é só isso : um certo modo de ver . O diabo é que , de tanto ver , a gente banaliza o olhar . . . vê não vendo .

Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver . Parece fácil , mas não é . O que nos é familiar , Já não desperta curiosidade . O campo visual da nossa rotina é como um vazio . Você sai todo dia , por exemplo , pela mesma porta . Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho , você não sabe . De tanto ver , você não vê .

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo porteiro . Dava-lhe bom-dia e , às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência . Um dia , o porteiro cometeu a descortesia de falecer . Como era ele ? Sua cara , sua voz , como se vestia ? Não fazia a mínima idéia . Em 32 anos , nunca o viu . Para ser notado , o porteiro teve que morrer .

Se um dia , no seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito , pode ser que ninguém desse pela sua ausência .

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem . Mas , há sempre o que ver : gente , coisas , bichos . E vemos ? Não , não vemos .

Uma criança vê o que um adulto não vê , pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo .

O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que , de tão visto , ninguém vê .

Há pai que nunca viu o próprio filho , marido que nunca viu a própria mulher .

Isso exige muito . Nossos olhos se gastam no dia-a-dia .

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença .



Otto Lara Resende

2 comentários:

almirante disse...

Caso os prfissionais "psi" ainda mantivessem o "olhar da indiferença" perante à questão da saúde mental: a luta pela descontrução do dispositivo manicomial não completaria 20 anos.

Anônimo disse...

a Dani ao ver esta foto falou;

olha mamãe, ela está com olhos de quem quer ver!